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MACBETH: DELÍRIOS DA CIVILIZAÇÃO PATRIARCAL
 

Rachell Rosa

Atriz e integrante do grupo de teatro Erosão. Cursa Licenciatura em Teatro no IFFluminense. 

 

A obra de que trato neste texto é uma ópera de quatro atos do compositor italiano Giuseppe Verdi, encenada na Metropolitan Opera House (NY) em 2014, sob direção do maestro Fabio Luisi. Verdi foi um dos compositores mais influentes do século XIX e participante do movimento romântico italiano, suas obras carregam grande dramaticidade e intensidade, ainda sendo muito apreciadas e executadas atualmente, mesmo tendo se passado mais de um século da sua morte. Macbeth de Verdi, ópera baseada na peça homônima de William Shakespeare, estreou em Florença em março de 1847.

Ao assistir a este espetáculo, houve um desafio em entender algumas de suas nuances, pelo fato de não ser fluente na língua italiana. Trata-se de uma ópera que dispõe de grande carga simbólica com o libreto dito em idioma italiano. Entretanto, por ter lido previamente a dramaturgia, a construção de sentido não me foi comprometida.

A ópera se desenrolou de forma sublime. Mediante ao fato de não compreender o que estava sendo dito verbalmente, minha atenção voltou-se para a teatralidade, que, por sua vez, aconteceu de maneira formidável, sem que eu pudesse desviar a atenção dos gestos de mãos e rostos intensos, dos corpos dos atores dilatados, da postura linda com o peito aberto de quem canta. Isso tudo sem contar o fôlego admirável da soprano russa Anna Netrebko, produzindo uma atmosfera intensa e arrepiante pelos efeitos sonoros de sua voz que atingia grande altura e dramaticidade, transpassando a tela e afetando o corpo do espectador. Para os que assistiram ao vivo, deve ter sido ainda mais avassalador.

Lady Macbeth, sem dúvidas, foi a atração principal da ópera (assim como na dramaturgia), não somente pelo talento grandioso da cantora lírica que a interpretou, mas por seu desempenho como atriz ao encarnar o grande poder de persuasão e sedução inerente à personagem shakespeariana, evidenciando o paradoxo entre a beleza física e o poder exterior, que contrapõe-se à podridão mental e culpa interior. Um intrincado dilema moral irreparável se forma – como consequência ao assassínio no qual ela induziu seu marido a cometer –, envolto num tom místico presente desde sua ascensão ao seu declínio, este marcado por solilóquios reflexivos que beiram a alucinação.

Assistir a esta releitura de Shakespeare faz-nos questionar o lugar da mulher na sociedade, comumente sendo o de ‘louca’ ou ‘manipuladora’: me pergunto se este arquétipo é de fato construído pela índole feminina ou se se trata de uma das consequências da composição estrutural da sociedade patriarcal, onde o único caminho da ascensão feminina seja pela astúcia de influenciar o seu homem.

Todas as demais personagens femininas detinham características enigmáticas, risonhas e ao mesmo tempo tétricas. Uma legião de mulheres de diferentes faixas etárias parece ler o futuro em suas bolsas, nas quais brotam luzes. Juntas compõem um coletivo homogêneo na paleta de cor, no fato de serem mulheres e nos movimentos corporais. Entretanto, as vozes polifônicas criam uma textura sonora múltipla que reforça a atmosfera esquizofrênica e mística da tragédia shakespeariana. Um caldeirão aparece como símbolo forte de bruxaria desde o início, revelando também uma natureza esotérica das mulheres na obra.

A performance de Macbeth também não deixa a desejar: Zeljko Lucic nos apresenta os rumos da figura do fiel Thane de Cawdor ao ambicioso e descontrolado regicida. Revela-se o antagonismo entre covardia e coragem de seu personagem, o qual, mesmo depois de se deparar com a profecia, parecia não ter cogitado a ideia de assassinar o rei. Isso muda ao mandar a carta a Lady Macbeth, que o conduz ao ato, o que faz com que ela se torne a personagem de maior influência na peça. Mesmo com toda a autoridade em vigor, ele precisava da influência delas (das bruxas e, posteriormente, da Lady Macbeth) para impulsioná-lo ao ato que talvez já estivesse em seu inconsciente.

Macbeth carrega o atrito entre, de um lado, a imagem do inocente servo de confiança do rei, que é tentado a pecar pela mulher (repare a semelhança com a história de Adão e Eva); e do outro, a figura do perverso homem capaz de matar até o melhor amigo para chegar ao topo.

As bruxas apesar de suas aparências fúnebres e delirantes, parecem as únicas que conseguem manter o controle da situação. Diferentemente dos demais personagens, cujas paixões os fazem perderem-se de si mesmos, as bruxas já demonstram superior sabedoria ao compreenderem o futuro e manipularem Macbeth a ambicionar o paradoxo do trono, que pode ser comparado ao diamante. Ocupar o trono é uma posição privilegiada que só o rei pode obter, porém há o risco de perder seu estado original com facilidade. O diamante, que apesar de ser o material mais duro e valioso da natureza, quase não possui tenacidade (resistência ao se chocar com outro objeto), é também um dos materiais mais frágeis do mundo. A partir do momento que uma única pessoa dispõe de grande poder e recursos, os demais naturalmente sentem inveja e desejam o seu lugar, e, considerando ainda a existência humana como algo instável, afinal ninguém é imortal, um monarca vive a vida com desconfiança mesmo se possuir um grande exército, pois os mais fiéis companheiros podem perverter-se na ambição de conquistar a posição de soberano em seu lugar, como é o caso de Macbeth. Dessarte, a soberania é uma posição de privilégios, mas de muito risco. Em última instância: ser rei é ser frágil, como um diamante.

Todo o espetáculo acontece de maneira a indicar uma cadeia cíclica de acontecimentos, através das movimentações circulares em massa de todas as bruxas num dado momento e pela reviravolta nos últimos segundos da apresentação, quando o filho de Banquo aparece de cachecol vermelho, o qual diz a profecia que será o próximo rei. Sua presença ameaça o atual rei Malcolm, e a cortina se fecha, reforçando a ideia de looping profético regicida.

Macbeth nunca será uma peça datada, pois evoca infinitas reflexões acerca da natureza e dos conflitos humanos. A versão de Verdi, interpretada pelas grandiosas performances dos atores e da direção do maestro Luisi, foi capaz de me fazer questionar a sociedade e deleitar-me ao mesmo tempo com a magnificência musical e estética do espetáculo. Fez-me pensar sem perder a fruição com a obra. Mesmo não entendendo uma palavra do que foi dito verbalmente e assistindo mediada pela tela do computador, pude sentir-me tocada pela bela ópera.

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